Friendzone? Machismo pouco é bobagem…

Friendzone, ou Zona da Amizade, é um termo muito usado para definir uma espécie de “limbo” dos relacionamentos, quando um dos envolvidos quer um romance com o outro, que, por sua vez,  só o vê como amigo. Não ser correspondido é uma experiência ruim, mas faz parte da vida,  não é mesmo? Ao que parece não, o que deveria servir como forma de lidar com as frustrações da vida acabou se tornando um círculo vicioso de vitimização e egoísmo.

Conheci um cara legal. Mais um troféu para minha zona da amizade.

O termo ganhou popularidade na série Friends, e desde então tem sido usado com frequência, especialmente por homens. O filme “Apenas Amigos” conta a história de um homem que foi friendzoned por sua melhor amiga na época do colégio, retornando à cidade 10 anos depois, cheio de rancor e pronto para mostrar a ela que é um outro homem, não mais o amigo companheiro e sensível de outrora. Vou usar esse filme como exemplo para explicar o porquê de a Friendzone ser um conceito machista, assim como sua relação com a cultura de estupro. ATENÇÃO! Abaixo há spoilers (revelações do enredo) do filme.

O filme começa com o personagem do Ryan Reynolds ainda adolescente, prestes a se formar na High School, escrevendo uma declaração de amor à sua amiga, personagem de Amy Smart. Graças a um descuido, a declaração cai em mãos erradas e ele é ridicularizado por colegas, enquanto a moça explica que só gosta dele como amigo. Magoado, o adolescente sai da cidade, dizendo que “um dia será alguém”.

O tempo passa e 10 anos depois, por acaso, ele volta à cidade. Perdeu alguns quilos, virou mulherengo (no more Mr. NiceGuy) e tem um bom emprego (e acha que vai impressionar sua velha amiga se agir feito um riquinho arrogante que trabalha com celebridades). Durante todo o filme, ele se comporta como uma criança mimada, querendo sair da zona da amizade de qualquer jeito, competindo com outro cara que também tem interesse pela moça. Em nenhum momento, e é bom frisar isso, ele se importa realmente com ELA, mas sim em conquistá-la, como se ela fosse um prêmio merecido pelo tempo que ele passou gostando e sofrendo por ela. Em um ponto do filme, ele chega a culpá-la pelo seu sofrimento amoroso, como se ela tivesse a obrigação de aliviar seu desejo.

Como toda comédia romântica, eles ficam juntos no final, mas só após ele pedir desculpas pelo comportamento infantil e demonstrar seu amor de forma sadia e normal.  Uma cena final, com três crianças, dá a entender que o drama da zona da amizade acontecerá outra vez, onde um menininho entrega seu biscoito à amiga, que agradece e dá o biscoito a outro menino. O menininho percebe que a menina só o vê como amigo e diz “oh não!”.

Por que friendzone é machismo?

1- Vilaniza mulheres por terem direito de escolher seus parceiros amorosos/sexuais;

2- O homem vê a mulher como um objeto de seu merecimento, e não como um ser humano complexo, com vontade própria e desejos;

3- O homem se sente injustiçado ao não ter seu bom comportamento reconhecido e recompensado. Ser “bonzinho” só para ter algo em troca é nojento. Se é tão ruim assim ser amigo da mulher desejada, é porque não é amigo dela, nem se importa com ela, só com o ego masculino ferido.

O que isso tem a ver com a cultura de estupro?

Tudo a ver. Mulher objetificada é mulher sem voz, sem vontades. O corpo da mulher é considerado público, à disposição de qualquer homem que se sinta merecedor. A partir do momento em que a mulher ganha voz e passa a decidir com quem transar, o homem machista se sente ameaçado. Lembremos que estupro não é um ato sexual, mas sim de dominação e poder. Friendzone nada mais é do que um discurso machista para julgar mulheres por seus desejos e escolhas, querendo colocá-las em “seu devido lugar”.

Atualização: devido a alguns questionamentos nos comentários, resolvi esclarecer alguns pontos que ficaram soltos e mal explicados.

E se gostarmos um do outro, mas ambos acharmos estar na zona da amizade?

Friendzone é o limbo dos relacionamentos, aquela situação de amor platônico, onde uma pessoa quer um relacionamento amoroso e a outra não. Essa situação se torna especialmente ruim porque as partes envolvidas não saem da situação, por algum motivo. Uma das reclamações mais frequentes é que o amigo desejado não expressa sua recusa, prendendo o amigo apaixonado na friendzone. Se houvesse um “não”, um “eu não tenho atração por você” ou “eu não gosto de você dessa forma”, a situação estaria resolvida. Isso não é o que eu critico aqui, gente. Acho que não ficou claro antes. Um artigo bom sobre o tema: 7 motivos pelos quais você foi colocado na friendzone.

Enfim, a minha crítica é sobre a deturpação desse conceito em um espiral sem fim de mimimis de quem não aceita “não” como resposta, ou se sente injustiçado por ser recusado por alguém. Vê-se memes vilanizando mulheres que recusam ter um relacionamento amoroso com amigos. Não se trata da friendzone como limbo, já que a recusa é clara. O que incomoda, nesses casos, é que a mulher tenha liberdade de escolher seus parceiros amorosos/sexuais. Memes e tirinhas explicando a grande injustiça que é ser um cara legal e não ser correspondido, enquanto a garota escolhe outros caras para namorar. Como se a garota não tivesse o direito de escolher seus parceiros. Uma coisa é a mulher agir de forma dúbia, para usar o amigo de massageador de ego (um dos problemas da friendzone), a outra é haver uma recusa clara e ser chamada de vadia por ter dito não (a friendzone deturpada e machista).

Essa é grande: Uma mulher tem um amigo próximo. Isso significa que ele provavelmente está interessado nela, já que está sempre por perto. Ela o vê somente como amigo. Isso sempre começa com um “você é um ótimo rapaz, mas eu não gosto de você desse modo”. Essa situação é aproximadamente o equivalente a um cara ir a uma entrevista de emprego e a empresa dizer: “você tem um ótimo currículo e todas as qualificações que nós procuramos, mas não vamos te contratar. Vamos, ao invés disso, usar seu currículo como base para comparar os outros candidatos. Mas vamos empregar alguém menos qualificado e provavelmente alcoólatra. Se não funcionar, vamos contratar outra pessoa, mas não você. Nós nunca iremos te contratar, mas te chamaremos eventualmente para reclamar sobre a pessoa que contratamos.

Vejam só: nessa situação HÁ recusa. A mulher diz que não gosta dele “desse modo”, que é um eufemismo para dizer que não se sente atraída. O que ocorre depois? O cara compara um fora a uma recusa de emprego. Como assim, Bial? Só eu acho isso bizarro?

O mais assustador não é isso, é ver que um dos comentários que ganhou mais likes foi este:

Se ela te colocar na zona da amizade, coloque-a na zona do estupro!
(Clique na imagem para ir ao site)

Um exemplo bem explícito do desrespeito ao “não” de uma mulher. Ver o estupro como vingança, mesmo que em forma de “brincadeira”, é perigoso. É a consequência mais grave desse tipo de pensamento, de não considerar a mulher como sujeito de vontades e escolhas.

Ela diz que você é o homem perfeito, mas ainda escolhe cafajestes ao invés de você. Não há como explicar isso.

Só eu acho muito conveniente se auto-declarar “bonzinho” e chamar todos os outros de “cafas”?

O que realmente importa?

Tenho acompanhado as discussões sobre o suposto estupro no BBB e resolvi expor o que observei nesses últimos dias.

Primeiramente, eu já esperava essa enxurrada de comentários machistas, principalmente no Facebook, culpando Monique pelo ocorrido, pois é o que sempre acontece quando um caso de estupro é noticiado na mídia, sem exceções. É incrível a incapacidade (ou seria negação?) das pessoas em geral de entender que o comportamento de uma mulher NUNCA é justificativa de estupro. Começando pelo óbvio: uma mulher não é estuprada por seu passado sexual, ou pelas roupas que usa, ou por beber demais e muito menos por “dar mole”. Uma mulher é estuprada porque alguém a estuprou, simples assim. Não sei o que houve naquela madrugada no BBB, mas se Monique realmente estava desacordada na hora, a conduta entra no tipo de estupro de vulnerável, não há dúvidas quanto a isso. O objetivo da investigação é saber se ela estava acordada ou não, não querem saber se ela deu mole primeiro, ou se ela foi “fácil”, tampouco querem investigar o passado sexual dela, pois tais coisas são absolutamente irrelevantes em um caso de estupro.

Infelizmente, também não esperava uma atitude ética por parte da Globo, que esta fazendo de tudo para abafar o caso. Só o fato de haver uma suspeita de estupro dentro do programa mostra que a integridade física e sexual (e demais bens jurídicos dos participantes) não estão sendo devidamente protegidos pela Globo, que teria o dever de interferir logo que uma situação dessas acontecesse. A bizarrice não termina aí, Boninho, diretor do BBB, foi categórico ao afirmar que “não houve estupro”. Parece que o papel de Grande Irmão subiu à cabeça desse boçal, que se acha acima de tudo e de todos. Se não fosse pelo bafafá virtual, talvez suas táticas de controle e manipulação tivessem funcionado. Daniel saiu da casa e a polícia está investigando o caso, mas a Globo não desiste nunca, não é mesmo? Dentro do BBB, é como se Daniel nunca tivesse existido e ninguém toca no assunto, mais um feito do Grande Irmão. Para finalizar o circo de horrores, Monique continua dentro da casa, sem poder falar sobre o que houve, sem acesso às imagens daquela noite, enfim, sem direito a informação e autonomia sobre o próprio corpo. E o acompanhamento psicológico? E o direito a um advogado? Como ela pode depor sobre algo que não sabe? O mais importante agora é dar voz à Monique.

O silêncio dos participantes, a demonização de Monique pelos internautas e o descaso da Globo são reflexos do que acontece em demais casos de estupro, considerado um grande tabu ainda. O senso comum pinta o estupro como um crime raro, e que só mulheres honestas/de família seriam vítimas legítimas, sendo o agressor um desconhecido que ataca na calada da noite. Se a mulher for “fácil” (odeio essa palavra), beber, andar sozinha na rua (principalmente à noite), não for virgem, usar roupas curtas, ou fizer qualquer outra coisa fora do esperado para uma “mocinha comportada”, é porque mereceu ser estuprada, pediu por isso, e que sofra as consequências, afinal “quando um não quer, dois não fazem”.

Casos como esse nos mostram que estupro pode ocorrer em qualquer lugar, com qualquer pessoa, nas mais diversas situações. Mesmo que, no fim, reste provado que não houve estupro no BBB, o caso já serviu para mostrar como a cultura de estupro funciona.

Cultura de estupro?? Sim, isso mesmo. É achar que um estupro pode ser minimizado conforme o comportamento da mulher; é achar que o corpo da mulher é propriedade pública, e que qualquer homem tem o direito de usar o corpo de uma mulher que “merece”; é ensinar mulheres a não ser estupradas, não homens a não estuprar; é achar que homens são animais irracionais incapazes de controlar o desejo sexual; é objetificar o corpo da mulher, não reconhecendo-a como um ser humano; é usar estupro como arma de guerra; é dizer que, quando uma mulher diz “não”, ela quer dizer “sim”; é reclamar de friendzone, como se a mulher não tivesse direito a escolher seu parceiro, e a lista segue

Links sobre o assunto:

1- O Brasil não conhece os limites do abuso sexual

2- Caso de estupro pode fazer Globo perder concessão do reality